César Príncipe
Manuel Antório Pina
Rui Madeira
Maria Elisa Sousa
Manuela Bronze
Fátima Lambert
Domicílio do Homem
Alguns Instrumentos
Aqui vemos e aqui temos um artista, no Registo Civil, em estação madura e, nos requisitos artísticos, com efectivo controlo de faculdades. Das faculdades da capacitação académica e da mais-valia acrescentada. Acácio não é nem tem ar de conselheiro. Pela estirpe cultural e pelo perfil cívico, é um homem atento e livre, que se formou na informação, que tem recusado acomodar-se no país ou arrumar-se no estrangeiro, não pactuando consigo mesmo nas aberturas de expectativas. Isto é, respeita o “élan” de auto-satisfação, assegurando uma direcção prospectiva, sem protagonizar rebeldias burlescas ou proclamar-se fadado para desvendar o conhecido, para recriar “ab ovo” a remota arte.
Na revista de expressões do presente que nos representem, sustenta-se na base de dados da Memória. O artista concluiu pela evidência: nem a escola faz o artista nem o artista desfaz a escola. É do bom-
-senso reconhecer o usável e o recusável. Acácio assume a clarividência da descendência. Todos os produtores são produtos. Ele é produto da Escola de Belas-Artes do Porto e de Portugal. Ele é produto da Universidade de Boston e do cosmos teatral portuense. Ele é produto do “design” da Imprensa e o Livro. Ele é produtor de gravura, desenho, pintura, escultura, instalações, intervenções murais, ilustrações literárias, cenografias. Produtor de artefactos, factos e actos. Uma produção com braço fabril e desembaraço febril. Uma produção obstinada pelas abordagens essenciais sem dispensar as coisas acidentais.
Assim ele é nesta exposição, possuído pela tontura e pela ternura, até no que toca à tortura. Que a tortura, como registo dos arquivos e de práticas (novas), marcou e marca presença na Babel dos Poderes e na Babilónia dos Seres. Acácio, o pintor, não abdica de reintroduzir hoje, na Babilónia Global, notícias do circo com luzes que cegam e do cerco das forças que nos reexpulsam do Paraíso. Pintor urbano e apetrechado, embarcado na pesquisa de explorações conceptuais, de mitologias do grande vazio, tem mantido a recordação do quotidiano (pretérito e actual), do planetário domicílio, preso de objectos, de relações identitárias, humanas, inumanas, desumanas. A sua pintura, que aqui vemos e aqui temos, traduz uma investida e um investimento no vácuo e uma recolocação de objectos universais segundo um objectivo pessoal, segundo uma ordem sinalética transformativa. Como se constata nos óleos e acrílicos sobre tela e nos pastéis sobre madeira, nos formatos maiores e menores (sobretudo nos maiores). Ordem que implanta no desmedido território da Abstracção, zelando, todavia, pelo efeito de pronúncia e denúncia. O pintor, ele, deixa nesse território neutral referências (históricas e alegóricas) à perpetuação dos instrumentos dos “donos” do espaço físico e filosófico do Homem e aos “rompimentos” dialécticos, éticos, estéticos.
Aqui o vemos e aqui o temos. Nos muros, nos portões, nas cortinas. Nas cordas, nos ganchos, nos paus. Nas escadas, nas barras, nas garras. Nos vultos femininos que ensaiam a subversão da Autoridade. O pintor, nesta exposição, transporta-nos para termos e terrenos duplamente modernos (no realismo minimal e no abstraccionismo maximal). Transporta-nos, pois, para a sua definição do campo dos conteúdos e das suas formas, das formas e dos seus conteúdos. Sem fervores didácticos. Aberto a interpretações, mas suficientemente empenhado no processo civilizacional. No processo da indústria e das tecnologias da opressão, das mecânicas ou estáticas ciências das câmaras
e das colunas de anulação, de amputação, de flagelação. O pintor, Acácio, devolve-nos cenários e aparelhos de Idades das Trevas. Repõe-nos em contacto com visuais inquisitórios e persecutórios, com equipamentos de batidas ao infiel, de montarias à liberdade.
Esta exposição acumula, em consequência, uma tensa alusão ao sucesso da ignomínia através das eras e das heranças. Consegue, entretanto, questionar tais “Cadeiras do Poder” num suporte plástico de assinalável consistência contemporânea. Com poucas cores. Com bastantes contrastes. Na dimensão sugerida pela gravidade dos tratamentos. Em Acácio, a dimensão, participa cada vez mais do realizado. Igualmente a textura participa cada vez mais da estrutura simbólica. Como é notório, nesta exposição, nestes quadros —”fons vitae” do autor e das paletas das nações, das classes e dos sexos. O seu filtro erudito e erótico ressintetiza a violência e as possíveis escapatórias, aliando a arte do indefinido e o artigo definido. Numa pintura “com pinta”. Com tinta. Com estilo. Com escala. Com cifrados apelos para que o sonho e a seriedade comandem a Vida, encontrem um estável palco, uma boa companhia, um respeitável público.
Aqui vemos e aqui temos uma pintura sem complexos: com mão de ofício, sintonizada com a inovação e comprometida com e por causas que nos justificam como fenómenos (mais ou menos breves) de insurgência e de subsistência.
César Príncipe in Cat. “Rompimentos”,Árvore, 1999
A Vida (e a Arte ) enquanto Teatro
Em “Rompimentos”, Acácio de Carvalho reuniu um notável conjunto de obras de pintura, algumas de grandes dimensões, a acrílico, óleo, pastel e “crayon”, sobre tela e sobre madeira. Na sua maior parte de datas muito recentes, as obras agora expostas evocam frequentemente para espaços de representação povoados das formas figurativas para que vem evoluindo a pintura de Acácio de Carvalho, mesmo se nela continua a ser óbvia a persistência de marcas do abstraccionismo geométrico.
Acácio de Carvalho traz a público nesta mostra três dezenas de trabalhos cuja coerência formal resulta não só do modo como o seu núcleo central convoca o teatro e o sistema de representação cenográfica (Acácio de Carvalho tem, como se sabe, desenvolvido intensa actividade como cenógrafo e encenador), mas também de uma austera sintaxe de elementos expressivos: cordas, torniquetes, roldanas, cortinas, tensores, instrumentos de tortura. Estáticas, as figuras humanas, que se diriam esculpidas e imateriais (o figurativismo de Acácio de Carvalho escapa sempre a qualquer espécie de naturalismo), são aqui pouco mais que sombrias presenças metafóricas, “tragicae personae” de um drama distante e irreal de forças em conflito e tensões contraditórias. Também elas, essas figuras, surgem como elementos apenas de um cenário, inscritas num desolado e opressivo teatro de paredes e chãos. Nenhuma janela metafórica, nenhuma saída, resta em tal mundo, um mundo de linhas rectas e agressivas e de silêncio, um espaço quase surreal de ausência, habitado por mecanismos e corpos solitários.
Sob a rasurada superfície do quadro, no entanto, pulsa —paralelamente à dinâmica das formas “expressas”, dos
volumes suspensos, dos fundos abstractizantes, dos conflitos da luz e da sombra —a tensão das cores e das matérias pictóricas, o penoso trabalho da espátula, a densidade das velaturas. A pintura de Acácio de Carvalho caracteriza-se, de facto, por muito trabalho de “atelier”, e a profundidade e dramatismo da paleta dos castanhos (sépias, ocres, tijolo, terracota) da maior parte das obras agora expostas são, em larga medida, conseguidas à custa de grande número de superfícies cromáticas sobrepostas e de sucessivas e laboriosas camadas de tintas.
O pintor intitulou de “Rompimentos” o conjunto. Significativamente, no entanto, nenhuma obras expostas tem título. Como se cada uma delas manifestasse uma mesma realidade formal: um espaço e uma matéria em equilíbrio crítico e à beira da ruptura. O que, de algum modo, pode ser uma metáfora, não só do mundo e da existência, mas também, e particularmente, da própria arte contemporânea.
Manuel António Pina in Jornal de Notícias, 20 de Outubro de 1999
A terra ao alto e o sol debaixo dos pés
Escrever sobre a pintura do Acácio, ou melhor, sobre esta “ pintura cenográfica” é fazer um exercício de memória e amizade. Mas é sobretudo assumir um discurso de admiração pelo Pintor. Acácio é, para mim, dos que melhor pintam. Quase sempre até à obsessão. Perfeccionista. Minimalista. Atrevo-me a escrever ( e a palavra mata) que o Acácio “inventa” cenários na sua pintura, que poderia chamar de minimalista, sem me preocupar um bocadinho com o que os críticos entendem. No léxico teatral, pano de terra, é o que serve o cenário ao nível do chão, que os actores/ personagens pisam. É, portanto, uma recriação do chão. A pintura do Acácio sendo chão, não o é. É uma recriação das texturas que nos habituamos a usar, a pisar, a meter as mãos e o cú, mas que a banalidade da vida nos acaba por esconder. Desvalorizamos as coisas e caímos ao mesmo nível, coisificando-nos. Deitamos para o lixo da nossa memória afectiva e sensorial, tudo que foi importante para crescermos. A vida e televisão obriga-nos a olhar para a frente. Agora por força do que vai sendo o hábito, também para cima. Não para o céu, mas para as torres que vão desabando em cima de nós. Parece que passamos a acreditar em deuses. Ora o Acácio cenógrafo/ pintor das nossa vidas, dos nossos quotidianos, quase diria perdidos, traz-nos isso aos olhos.
Mostra-nos e confronta-nos com essas texturas, essa linhas e formas que não percebemos numa primeira abordagem. É um trabalho fortemente criativo e diria pedagógico, porque nos reensina a leitura das matrizes, e nos obriga a ver. São muros o que ele coloca à frente dos nossos olhos. Será que temos tempo para os derrubar, sem os perceber, sem os analisar?
Os panos de terra, tornam-se assim superfícies à altura dos olhos.
Passam a paisagens que se abrem à nossa frente.
Cria-nos, deste modo, novos horizontes de memória.
Confronta-nos com o nosso pequenino quotidiano.
Ó Acácio onde meteste o sol?
Braga, Outubro de 2001
Rui Madeira in Cat. Pano de Terra, Galeria Artesis, V.N.Gaia, 2001
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É só para ver.
Imagens – esbanjam, despudoradamente, a sua própria natureza visual.…
…É só para ver.
Imagens – desafiam a referência de um espaço fantástico e intangível que transporta o espectador para um qualquer acontecimento cénico.
Um exercício formal onde as personagens, suspensas, desafiam a gravidade, encerradas na ilusão de um espaço sem sombras.
Imagens – evoluem no infinito em fluxo cromático, ainda que aprisionadas no rasto do movimento.
Estas impressões digitais, génese do desejo de dar forma à motivação do gesto inicial, acabam por tornar-se símbolo da própria criação e onde realidade e representação são uma e a mesma coisa.
…Este conjunto de trabalhos, na sua heterogeneidade, explora os limites da reconfiguração na distância matricial de um elemento ou de uma forma.
Cada peça reconstitui uma realidade em fuga – momentos no presente onde o futuro recebe a impressão do passado.
É só para ver.
Manuela Bronze in Cat. “Página Seguinte”, Galeria El Torco, Suances, Fevereiro e Março, Espanha, Agosto de 2009
Acácio de Carvalho
Na pintura de Acácio de Carvalho prevalece a relacionalidade do autor com o teatro. A sua actividade cenográfica entra num diálogo fértil com a pintura. As suas telas assumem o estatuto de fragmentos cenográficos, pertença de uma dramaturgia que se situaria entre, porventura, Samuel Beckett ou lonesco. Não que se trate, em todos os casos da sua produção, de uma iconografia promotora de endereçamentos para o absurdo ou a exaustão de uma experimentalidade ética e existencial. Mas sim, pois aborda elementos de forte intenção e intimidade, prova notória da comunhão e diferença entre os humanos. Indivíduos e pessoas que assumem desesperos, verdades, por detrás de cortinas que afastam, dissimulam mentiras ou ilusões genuínas. Promovem visões de tédio, lassidão ou desejos corcomidos pelas definições exactíssimas, quase hiper-realistas dos motivos pintados/pensados. Esses elementos possuem o significado de palavras que, associadas numa sequencialidade estética, transportam parcelas de discursos nunca transmitidos, porventura.
Reafirme-se que a sua pintura é indissociável do teatro, também numa acepção congregadora que recorda a primordialidade que lhe adjudicou Almada Negreiros. Almada encontrava no Teatro a Arte por excelência, que ao tempo, podia cumprir tal propósito melhor que qualquer outra arte; considerava o Teatro uma disciplina de predominância visual, apelativa de todos os sentidos em complementaridade, integrador do domínio das artes plásticas.
Considere-se o facto generalizado de as diferentes personagens, nas peças de teatro, servirem simbolicamente para afirmar o desenrolar das cenas verídicas da humanidade, seus conflitos e confrontos, desejos e angústias. Seja através de recurso ao verismo, à utopia, à ideologia, ao esteticismo (quase total), à criptação sociológica ou mitologlca, aos modelos diversificativos de inconsciente ou absurdo... Enfim, são estas as nótulas estéticas e antropológicas que percorrem, habitam a pintura de Acácio de Carvalho. Fale-se de antropomorfismos, de situações dramatizáveis de existência, seja pela ausência figural, seja pela presença de indícios, vestígios ou símbolos, frequentemente de matriz objectual devidamente fixados na tela como se de cenário se tratasse. Estabelece uma iconografia que, ao longo da última década, se foi afastando da figuração, para consolidar uma imagética baseada em campos mais áridos de elementos visuais. Assim, as Séries mais recentes reconhecem territórios disciplinares onde se desenvolvem pesquisas de uma picturalidade mais estóica e depuradora. A exigência de dramatis personae inscreve-se em outros códigos iconográficos. Que não se deixam desprender da coerência advinda de anteriores realizações.Pois, não se esqueça que a Arte é constituída por expressões disciplinaresq ue geram um todo: a pintura, a escultura, a arquitectura, a música, a dança, o teatro, e também o
E também o cinema...
Fátima Lambert in “Pintura Portugesa Contemporânea”, Colecção Instituto Ploitécnico do Porto, 1ª ed, Dez. 2005
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